17 de fevereiro de 2014

Alegoria da Buraca


 O fim de semana foi bom meus leitores fofinhos? Pronto ainda bem, vamos lá começar a semana como deve ser. É um texto grande, por isso ponham o cinto. Um texto que os menos inteligentes vão achar racista, desde logo pela foto de um pretinho. Mas fui eu que tirei a foto, gosto dela e não tinha mais nenhuma que representasse bem o conteúdo do texto. E não, ele não me está a tentar roubar a máquina fotográfica. Seus racistas.

Eu nasci, fui criado e ainda resido nessa bela localidade da Buraca, nos arredores de Lisboa mas já no Concelho da Amadora. Viver na Buraca é toda uma experiência. Não será só na Buraca, mas em muitas das zonas dos arredores das grandes cidades com paredes meias com grandes bairros sociais. A Buraca está delimitada pela Cova da Moura, Bairro 6 de Maio, Bairro da Boavista e do Zambujal. 4 zonas maravilhosas, que se não fosse o tráfico de droga, os assaltos, confrontos com a polícia, os homicídios e as barracas até que não eram zonas más.

Viver na Buraca é ver alguém a fazer jogging e pensar que já houve merda. É estar habituado a ouvir tiros na rua, que quando se ouve já nem se repara a não ser que sejam mais do que os habituais. É saber todos os atalhos e becos num mapa de fuga mental pelo qual me tinha que reger quando era mais novo. Era ir jogar à bola para o ringue todos os dias e saber que aquela bola nova provavelmente não voltaria para casa. Era saber que correr rápido e ter stamina era importante e não era para jogar, mas para fugir. Foi ter vontade de ter carta e carro assim que possível, não para ser independente, mas para não se ter que frequentar a estação da Damaia, onde há placas a dizer "Para sua segurança utilize a saída 2 a partir das 21h". Uma estação ter este aviso é sinal que já desistiram.

É ouvir Kizomba como música de fundo onde quer que se passe com muitos carros a fazerem questão de dar música ambiente a todos os outros. E depois há aqueles atrasados mentais que andam com o telemóvel a dar música sem utilizar auscultadores. Sempre que vejo um artista desses dou-lhe um enxerto de porrada mental com o golpe de misericórdia a ser enfiar-lhe o telemóvel no rabo a tocar o Hino da Alegria. Se fosse uns Led Zepplin, uns U2, ou até o Quim Barreiros tudo bem, mas nunca é. Quem tem bom gosto não anda com o telemóvel a dar som. Só os labregos com mau gosto em tudo, incluindo musical fazem isso. Por isso é sempre uma Kizomba foleira, ou música de carrinhos de choque.

Mas morar na Buraca tem as suas vantagens. Provavelmente não te vão parar numa operação STOP se conseguirem ver com antecedência que és branco, a não ser que tenhas boné e o carro alterado com o sentido estético do José Castelo Branco. Havia um grande risco de eu ter ficado mitra. Não sei qual a função que calcula essa probabilidade, mas basta olhar à volta e ver que era uma probabilidade bastante alta. Mas, ou pela educação em casa, ou pelos bons amigos que tive a sorte de fazer, nunca segui esse caminho. As marcas de fato treino e a Lacoste não ganharam muito dinheiro à minha custa.

Viver na Buraca é ter uma espécie de Ganza McDrive a 2 minutos de casa, onde se pode parar o carro e adquirir estupefacientes com todo o profissionalismo e comodidade sem deixar sequer o assento do carro. Pelo menos foi o que um amigo meu me contou... Não sei se é por essa facilidade de acesso que a Buraca já deu muitos nomes ao humor nacional, tais como Bruno Nogueira, António Feio e João Baião.

Andei sempre em escolas públicas. Os meus pais acharam que eu tinha cabedal para não precisar de ir para um colégio de xoninhas. Na escola número 1 da Buraca, na Escola Preparatória da Damaia, ou como carinhosamente apelidávamos, Escola Pretória da Damaia, e depois na Escola Secundária D. João V, também na da Damaia (para quem não sabe, a Damaia é a irmã mais velha da Buraca). Eu senti o que poucos brancos sentem. Senti-me minoria. E senti-me descriminado por ser branco. Sofri muito mais racismo do que alguma vez pratiquei, até porque acho que nunca o fiz. Sempre tive a inteligência para saber que se há 99% de probabilidade de ser assaltado por um preto na minha zona é apenas por questão social e económica, e não por questão de raça. Curiosamente a única vez que me apontaram uma arma, ainda que uma seringa, foi um branco. Mas tenho amigos que foram assaltados com facas, pistolas e violência várias vezes e que essas experiências lhes moldaram o pensamento em relação ao racismo.

"Pretos?", que expressão racista, dizem alguns hipócritas. A palavra não quer dizer nada, o que quer dizer é o sentido que está por trás. "Uma pessoa de côr" e outras expressões do género são palavras inventadas por brancos para poderem dizer "pretos" sem se sentirem mal. Eufemismos e paninhos quentes é para quem descrimina. Quem trata todos por igual não precisa desses subterfúgios.

Vou dar uma de avô cantigas e contar-vos uma fábula, mas que é real. Um dia, uma madrugada, estava eu a chegar a casa, estacionei e desliguei o carro. Veio um grupo de 4 rapazes na minha direcção, já eu os tinha topado há muito, pedir um cigarro. Não tinha. Depois pediram-me boleia que eu tentei declinar de forma simpática. Sacaram de um molho de notas de 20€ do bolso e disseram que me pagavam, que era só para não terem que apanhar um táxi porque como eram pretos nunca conseguiam arranjar taxista que os levasse. Vi-me num dilema: ou pensava que eram boa gente e os levava, ou partia do princípio que me queriam assaltar e, para isso, podiam fazê-lo ali, ou partir-me o carro depois de eu entrar para casa e/ou fazer-me visitas semanais, já que ficavam a saber qual era o meu prédio. Decidi levá-los e disse: 
- Bem isto é uma prova de confiança do caralho que vos vou dar, que mais ninguém faria por isso vejam lá...
- Na boa, a gente nem tem armas nem nada. - Fiquei muito mais descansado... E pronto, lá partimos. 
- Podemos fazer uma ganza no teu carro? - Gostei da educação em pedirem.
- Podem, mas se aparecer bófia não tenho nada a ver com isso. 
- Na boa sócio, queres? Até te deixamos aqui esta placa. - Mais uma vez, boa educação e preocupação para com as minhas necessidades. 
- Não obrigado, já deixei de fumar. - Lá continuámos, ao som de música que eles fizeram questão de pôr, perguntas de circunstância e eles a falar crioulo entre eles ao que eu disse:
- Olha que eu percebo crioulo! - Curiosamente não costumo colocar isso no CV
- Na boa, na boa estávamos só a dizer que aquela gaja tinha ganda cu!
- Pois eu percebi, estou só a dizer para se estiverem ai a falar de cenas privadas a pensar que eu não percebo... - Mentira, quis foi mostrar que eu era bué cool e street wise...
- Nahhh na boa, mas boa onda teres avisado mano!
A meio da viagem veio a conversa do racismo. 
- Não nos querias trazer porque somos pretos né? 
- Não tem a ver com isso, não costumo dar boleia a pessoal desconhecido às 6 da manhã. Nem era pelo medo de ser assaltado era mesmo porque não costumo fazer isso e estou cheio de sono. Fossem pretos ou brancos.
- Ya mas se fossemos brancos se calhar tinhas dado mais rápido... 
- Epá se calhar mas não é porque sou racista, é porque a probabilidade de ser assaltado na minha zona por pretos é maior do que por brancos, mas isso não tem a ver com racismo, tem a ver com a zona que é, se eu for a uma zona complicado no Porto tenho tanta ou mais probabilidade de ser assaltado e por brancos de certeza. Não tem a ver com a raça, tem a ver com a exclusão social...
- Porra, você é honesto. Falou verdade! Náaa, falou mesmo verdade!!!
- Tinha dado mais depressa se fossem 4 gajas boas! - Rematei eu.
- Xiiii mesmo a sério HAHAHAHAHAH - Gerou-se uma risada e euforia como só os pretos sabem fazer, basta ver a diferença entre um stand up do Dave Chappelle e do Louis CK. Os pretos sabem rir melhor e mais alto, não há dúvida, apesar da pele mais escura são mais transparentes nessas coisas.
Após 15 min de viagem:
- Bem podes parar aqui. Esta é a nossa zona. Sempre que vieres cá dizes que vens da minha parte e ninguém te toca. - Agradeci a preocupação embora me parecesse que não era zona que eu fosse visitar tão cedo.
Quiseram dar-me 20€ mas eu não quis. Eles ficaram sensibilizados pelo meu gesto até porque sempre eram mais 20€ que tinham para comprar ganza. 1 a 1 despediram-se de mim, com apertos de mão criativos, encosto de ombro e agradecimentos sinceros. Dei meia volta e voltei para casa.

Agora estavam eles bem intencionados de início? Tenho dúvidas. Já são muitos anos a virar frangos. Acho sinceramente que decidiram que não me iam assaltar algures a meio da viagem. Ou por eu estar aparentemente descontraído e para lhes estar a dar boleia ser mais maluco que eles, ou porque acharam que não valia a pena. Ou apenas porque a festa tinha sido boa e já estavam cansados. Seja como for, foi uma boa experiência, voltei para casa com uma história boa para contar.

E pronto viver na Buraca é assim. Dá estaleca, forma o carácter e dá-me ferramentas muito úteis para a minha vida pessoal e profissional. Nem que seja porque quando digo que sou da Buraca vejo um misto de respeito e medo nos olhos das pessoas. E de nojo também. Ficam-se sempre com bons contactos no mundo do crime. Há sempre um amigo de um amigo que por 500€ despacha pessoas e nunca se sabe quando se precisa desse tipo de serviços. Não é tão mau como parece talvez porque para mim já é normal. Se preferia ter nascido noutro sítio? Olhando à primeira vista e pondo o preto no branco, passe a expressão, preferia certamente ter crescido na Quinta da Marinha. Mas também podia ter crescido um beto com a mania que é rico, que é tão mau ou pior do que ser mitra. Fora a piscina.

P.S. Se a expressão "por o preto no branco" fosse "por o branco no preto" provavelmente seria considerada racista.




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